Lau Siqueira e Astier Basílio falam sobre cordel com exclusividade para o site da Academia
“O Cordel é um gênero robusto que por ter nascido fora das chamadas culturas oficiais, permanece vigoroso e soberano”
Por ser poema popular narrativo destinado inicialmente a um público pouco letrado, o cordel seria inferior como gênero literário aos modelos mais eruditos?
LAU SIQUEIRA – Sempre que me refiro ao cordel eu lembro que o cordel brasileiro é estudado na França e em alguns países como Poesia Popular Universal. Na verdade, o que existe não é uma inferioridade ou superioridade. O que há é um estratosférico preconceito de classe e um inaceitável preconceito regional. Algo torpe, inclusive. Todo cordelista é um clássico. É o cara que tem uma noção natural de metrificação com muita naturalidade. Coisa que muito poeta moderno, com láureas acadêmicas e premiações significativas, não tem. O próprio Carlos Drummond de Andrade se referia ao grande poeta paraibano Leandro Gomes de Barros como “o príncipe dos poetas”. No entanto, o poeta de Pombal (que nasceu num sítio onde hoje é Paulista) não está devidamente reconhecido na História da Literatura Brasileira como o grande poeta que foi. No mais, ainda temos poetas semianalfabetos e até analfabetos, mas temos também grandes estudiosos, a exemplo de Aderaldo Luciano. Temos cordelistas doutores. Que inferioridade é essa? O cordel cumpre um papel fundamental na diversidade cultural nordestina e brasileira, é um gênero que sempre extrapolou as fronteiras
ASTIER BASÍLIO – A definição de que o cordel é destinado ao público pouco letrado não corresponde mais ao presente. Lembro de conversar com Manoel Monteiro e ele me dizer que seu público era predominantemente universitário ou de escolas. Com relação à inferioridade do modelo, não creio que haja um modelo particular do cordel. Explico: a estrutura de rimas e estrofes não é um traço particular, havendo a presença desse modelo em outras modelos literários, eruditos inclusive. O que lhe seja próprio é a combinação da estrutura vérsica com a proposta narrativa aplicada aos temas
Sendo hoje uma época em que pouco se lê, a estrutura rimada simples seria mais atraente para ter mais audiência, e por isso mais poetas do campo erudito estão produzindo cordel?
LAU SIQUEIRA – Não tenho a menor dúvida. O Cordel é extremamente sedutor. Um tipo de texto que estimula duas coisas fundamentais até mesmo para a formação intelectual e cidadã da juventude, que é a memória e o prazer da leitura. Imagine você estudar matemática sem capacidade de memorização? O alcance dos benefícios são os mais amplos. Mais do que isso, pela extrema influência dos meios eletrônicos o Cordel passa a ter uma função primordial e inadiável na Educação. Há um diálogo acentuado do Cordel sobre as culturas ditas modernas. Até o RAP brasileiro bebe diretamente na fonte do Cordel e do Coco de Embolada. Ainda bem que temos muitos professores cordelistas. Pessoas apaixonadas que sabem como transmitir essa paixão que está no sangue e na raça do povo brasileiro. A exemplo do poeta Bento, de Assunção, ali no Cariri, que é um ídolo para seus alunos devido à forma de levar o cordel para a sala de aula. Temos esse clássico do Cordel da Paraíba que é El Gorrión, aqui em Itatuba. Ele também é professor. Muitos outros professores, ainda bem, mergulharam na sabedoria popular e foram para os bancos da universidade sem abrir mão da forte raiz cultural cordelista.
ASTIER BASÍLIO – Não saberia encontrar uma relação direta entre a poesia rimada suscitar um número maior de leitores. É uma afirmação que demandaria pesquisa para ser confirmada. Quanto aos poetas do campo erudito estarem produzindo cordel, talvez seja importante observar que o público tradicional do cordel, a população semi-letrada da zona rural, que lia o cordel como meio de comunicação, como uma espécie de jornal, e até o utilizava como ferramenta de alfabetização, não existe mais. De modo que a mudança de público se impõe como um definir que talvez dê conta de responder essa questão.
Como vê a dinâmica do cordel na modernidade?
LAU SIQUEIRA – Penso que não se pode perder a lógica do folheto. É um conceito e uma opinião muito particular. Não sou contra a modernidade. O que eu acho é que a modernidade é inevitável, mas não pode sufocar a memória. Sob pena de formarmos gerações prontas para a barbárie e alimentadas pela mais profunda ignorância. É certo que o Cordel se expande cada vez mais pela internet, nas redes sociais. Também é certo que muitos cordelistas estão preferindo publicar nas vias do livro tradicional, grandes antologias do cordel. A exemplo do grande Beto Brito. Mas, uma coisa não elimina outra, a meu ver. A perspectiva do folheto tradicional não deve se perder nunca e não vai se perder.
ASTIER BASÍLIO – O cordel responde ao novo tempo, ao novo público. Me dá a impressão de que há uma consciência do grande patrimônio constituído. De modo que há uma reatualização dos temas, além de um olhar para os assuntos que sempre foram recorrentes como o cangaço, um olhar mais bem humorado sobre a realidade. O gênero da peleja me parece ser o que melhor se aproveitou das emergências tecnológicas. Agora os poetas têm como escreverem em parceria os duelos através da internet.
Como analisa a influência dessa poesia narrativa popular no cinema, artes visuais e música?
LAU SIQUEIRA – É muito natural, pois o cordel é escrito como se fosse um roteiro de filme. É uma narrativa que nos conduz ao universo das imagens e do imaginário. Sua irreverência é irretocável. Sua capacidade de transmissão de fatos é alguma coisa extremamente apaixonante. Caminha lado a lado com um setor básico da história das artes visuais, com a xilogravura principalmente. Mas, também com a capacidade de produzir imagens que um texto em cordel possui. A linguagem do cordel é extremamente musical e pela sua densidade sempre influenciou nossos compositores. O cordel marcha ao lado do coco de roda, da cantoria, da embolada, como uma das estruturas mais abrangentes da música brasileira. É alicerce forte, meu nego. Esse edifício não cai nem que dê a muléstia dos cachorros. E eu incluo aí até mesmo as transgressões modernosas da Tropicália e de outros movimentos musicais como o que revelou músicos e compositores como Alceu Valença, Belchior e Zé Ramalho, principalmente. Esse povo todo bebeu na fonte. Eu até acrescento por conta própria, a influência do cordel no jornalismo. Pois nos tempos antigos o Cordel era uma das formas mais eficazes para o povo saber o que se passava no mundo. A história do Brasil está naturalmente narrada em cordel. O cordelista é enraizado na tradição dos grandes trovadores da Idade Média e o Cordel está na base da origem da Literatura Universal. No caso do Jornalismo, alguns folhetos podem ser provocativos na busca da origem do chamado livro-reportagem.
ASTIER BASÍLIO – O cordel se impôs como um patrimônio, como um repositório rico do imaginário nordestino. E não é um fenômeno recente. Veja-se Glauber Rocha em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que é de 1964. Além de praticamente parte considerável do repertório da chamada Invasão Nordestina dos anos 1970, com Alceu Valença e mais notadamente Zé Ramalho. Enfim, o cordel, por sua natureza emblemática, por sua força histórica e poética, se constituiu numa base simbólica com a qual outras artes e a publicidade, costumam dialogar.
O poeta de cordel em seus recitais é um ator apresentando sua obra. E o teatro, como se encaixa na literatura de cordel?
LAU SIQUEIRA – Se encaixa como uma luva em qualquer linguagem artística. Eu já vi espetáculos teatrais grandiosos, totalmente narrados em cordel. Cito como exemplo a Paixão de Cristo montada pela FUNJOPE em 2006 ou 2007, num texto maravilhoso do grande escritor paraibano, Tarcísio Pereira. Um cabra que é da terra de Leandro Gomes de Barros e Celso Furtado, também. Naturalmente, o cordelista ao declamar seus versos, se torna um ator expressando a própria criação. As funções básicas de um ator estão presentes na voz do cordelista que encanta plateias. No caso, ao declamar, o cordelista reinventa permanentemente o próprio texto. Claro que tem alguns que são medianos, mas existe uma multidão de cordelistas de interpretação cheia de significados novos ao texto. Eu acho genial.
ASTIER BASÍLIO – Como o cordel também possuiu um potencial narrativo muito forte, é possível encontrar aí um elemento de aproximação com o teatro, que é também uma arte narrativa. Se voltarmos aos clássicos, veríamos que o teatro de Gil Vicente, todo feito em versos, contém muito da natureza do cordel, da mesma forma como o teatro do espanhol Calderón de La Barca e, mais contemporaneamente, o teatro de Ariano Suassuna, a eleger motivos do cordel. Porém, onde o cordel melhor se materializa no teatro é na obra de potiguar, radicada em Campina Grande, Lourdes Ramalho. Cordel e teatro sempre conversaram.
Qual seu ponto de vista com relação ao fenômeno do velho cordel estar apropriando-se de ferramentas modernas para veicular sua literatura, alcançando seu público?
LAU SIQUEIRA – Eu acho fundamental invadir essa praia cibernética. Ficar de fora, por quê? Não podemos esquecer que vivemos num tempo em que os avanços tecnológicos estão presentes em tudo. Hoje até operações bancárias você faz no celular. São inúmeras as atividades e recitais ligados ao cordel em que o poeta, ao invés de tirar o folheto do bolso, tira o celular e recita seus poemas com a mesma carga ancestral que define a importância do Cordel. Vá no Youtube que você vai encontrar uma infinidade de poetas declamando lindamente. Mas, repito, apesar de tudo, a manutenção do folheto como suporte básico para o cordel é fundamental. Atualmente, os cordelistas representam a principal ponte entre a tradição e a modernidade. Eu vejo a tecnologia como apenas mais um instrumento de universalização deste importante gênero artístico. Particularmente, leio folhetos, mas também busco cordelistas no Dr. Google.
ASTIER BASÍLIO – Não acho que exista velho cordel. O cordel é o retrato do seu tempo. O velho cordel ficou no velho tempo. A poesia popular sempre teve uma grande virtude de refletir o seu tempo, de estar olhando nos olhos da contemporaneidade. E isso desde seu início.
Se você lê cordel e acompanha esse movimento, dá para perceber algum sinal de reinvenção ou experimentação do novo dentro dos esquemas fechados do cordel tradicional?
LAU SIQUEIRA – Desde os movimentos de vanguarda que a partir do final do século XIX até meados do século XX inquietaram artistas e poetas do mundo inteiro, a exemplo do Dadaísmo, do Surrealismo, da Poesia Concreta, da Poesia Engajada, etc, se nota não uma reinvenção do Cordel, mas uma profunda influência do Cordel em outras áreas, se tornando assim base de um experimentalismo artístico que ultrapassa e transgride a tradição. E logicamente que tem Cordel que leio e acho que está mais pro RAP e pra outros gêneros. No entanto, a base de influência é o Cordel e não o RAP. Parece que nada abala a rigidez da forma, porque no Cordel como em toda boa Poesia com P maiúsculo, forma é conteúdo. O que eu vejo nos últimos tempos é um confronto direto com a modernidade com amplas vantagens para a linha mais tradicional do Cordel. E nisso tudo transborda uma alegria imensa e uma humanização das relações que é espetacular.
ASTIER BASÍLIO – Há renovação temática. Assuntos que, repito, refletem as questões do agora. Há uma tendência a pensar que a modernização se faz pelo desmonte, pela destruição. O cordel e a arte popular se renovam a partir das mesmas bases, das mesmas matrizes. É uma tradição renovável, mas é uma tradição e como toda tradição, sujeita ao respeito às suas bases elementares. O fato de o cordel ter um esquema fechado não o diminui, muito ao contrário, o engrandece e é dentro dessa contradição, a de se renovar dentro dos limites da regra, que está o grande desafio do cordel.